domingo, 26 de julho de 2009




“Prometeu e Epimeteu são duas figuras míticas. São dois deuses gregos. Prometeu furtou de Zeus, o deus dos deuses, a arte do fogo e a luz do saber técnico em benefício da humanidade. Ficar acorrentado por toda a eternidade e ter seu fígado comido todas as manhãs por um abutre foi o castigo que Prometeu recebeu. Prometeu em grego significa, literalmente, “pré-pensador”aquele que pensa, que analisa, aquele que conhece antes de fazer, que pensa antes de agir. Portanto, é prudente, racional. Epimeteu, irmão simétrico de Prometeu, compartilha no universo um outro destino: de ficar solto, errante no mundo, de vagar aleatoriamente. Epimeteu em grego significa “pós-pensador”, aquele que faz e depois pensa, aquele que age antes de pensar. Ao contrário da prudência de seu irmão, a base motivacional de Epimeteu está nas suas pulsões, instintos, paixões. Em si mesmo Epimeteu é a voluptuosidade do desejo, a exuberância da vida diante do racionalismo técnico de Prometeu. Na disputa de poder entre os deuses, em alguns momentos há os que se impõem mais fortemente. Assim, Prometeu pode controlar vidas humanas e expandir seu poder para além do olimpo. Em certos momentos, ele pode se tornar mais forte do que Epimeteu (ou vice versa) no exercício de seu poder sobre os mortais.
Os humanos seguidores de Prometeu são pessoas prudentes, racionais e dominadoras de várias técnicas. Pensam no futuro e por isso antecipam a solução para possíveis problemas. Mas são pessoas que se privam de inúmeros prazeres, que não sabem se lambuzar do mel cuja fonte desconhece.
Os humanos seguidores de Epimeteu são seres improvidentes. Não calculam nem projetam o futuro, preferem o que seja aprazível no momento. Na verdade, são pessoas amantes e inconsequêntes, conhecem pouco as causas das coisas, mas se alimentam das coisas como elas são, se alimentam de sonhos perdidos, esperanças e paixões repentinas. Além disso, são seres alegres e servos inconsequêntes de si mesmos, de seus instintos e pulsões. Embriagam-se em prazeres intensos e fugazes. São soltos. Vivem ao “deus-dará” e a vida sempre dá: dá dor e prazer, tristezas e alegrias. A vida sempre dá e dará. Sozinho no mundo, Epimeteu sofre com o seu destino.
Prometeu e Epimeteu poderiam ser vistos, aqui, como duas imagens metafóricas da condição do ser. Não é à toa que eles são irmãos. Eles representam a unidualidade da natureza humana: homo sapiens/demens, saber/loquem, prosáico/poético. Prometeu e Epimeteu são a contradição complementar um do outro. No mundo antigo, o fígado era considerado o lugar de todas as paixões, desejos, lugar das chamas vivas e dos impulsos selvagens. Fenômeno interessante é que, de acordo com a narrativa mítica, o fígado de Prometeu é regenerado a noite. Por quê? Talvez porque seja a noite, quando o silêncio paira e a mente vacila, que as paixões e as fortes emoções afloram. É a noite quando a conciência conscienciosa pede férias de si mesma, que a regeneração subjetiva do ser acontece em segredo. Nessa pespectiva, Epimeteu seria parte da vida prometeica, seria responssável pela regeneração do fígado de Prometeu. Epimeteu poderia ser visto aqui como o “pré-pensamento”, como o que fica “por trás do pensamento” de Prometeu. Em uma palavra: epimeteu não é o fígado, mas o ser ou substância que faz a cada dia o fígado do irmão se regenerar.
Poderíamos dizer que o abutre que devora o fígado de Prometeu não é outro ser senão sua própria racionalidade técnica, suas cobranças, seu autocontrole. Para Prometeu se orgulhar de sua técnica e astúcia, de sua inteligência e capacidade, ele paga o preço de cortar ou matar, mesmo que dolorasamente, suas próprias paixões, seus instintos e desejos para ser o deus da técnica e da prudência. Mas os deuses também padecem, padecem por serem perfeitos e estarem condenados à condição de imortalidade e imutabilidadede de si. Ora, só suporta o padecimento aquele que é maior que sua própria dor. Somente os defeitos podem ser concertados. A perfeição é o limite da mutabilidade. A transmutação de si ou sua capacidade de se auto-regenerar é o dom humano que nem os deuses têm.
Na narrativa mítica, o fígado pode representar a subjetividade de Prometeu, subjetividade que ele mesmo não pode viver, enquanto que o abutre a tecnicidade que devora o ser, a vida, a subjetividade. É essa tecnicidade que prende o homem, ou os prometeicos, às demandas da eficácia tecnológica do mundo. O pensamento racional/técnico de Prometeu o prende, rasga, pune e devora seu fígado, lugar de sua subjetividade.
Prometeu é o espírito do homem maduro, do pensamento domesticado que tenta tudo classificar para tudo conhecer e controlar. Portanto, os seguidores de Prometeu sonegam a si mesmos, sonegam os pequenos e engrandecedores prazeres que podem ter uma criança ao brincar com a vida. Isto porque eles se torturam, se dilaceram para alcançar seus objetivos, pois sonhos são abstratos demais para eles. Não deixam de ser pessoas medrosas, pois tem medo do fracasso, já que o fracasso é uma das experiências mortais, uma experiência dos não preparados. Eles não admitem a falha e o fracaso porque sabem que um deus pode tudo. Só não podem fugir de seu destino e condição cósmica
Na verdade os prometeicos são seres inquietos porque buscam sua realização mental, cognitiva. Mas sua realização é a conquista do ideal. Eles esquecem que mesmo em uma experiência fracassada e em um ato impensado pode existir emoções indefiníveis, momentos de satisfação absoluta e reconhecimento do que se é. Os prometeicos desenvolvem a mente, enquanto o fígado vai sendo comido. Enchem a cabeça, mas ficam com o coração vazio.
Epimeteu é o espírito aventureiro da criança ou o símbolo do pensamento selvagem que conhece as coisas ao vivê-las para depois classificá-las. Seu destino também é cruel, viver como ele vive é seu padecimento. Epimeteu, diferentimente, brinca e cansa, deita e rola, corre e rasteja, distraidamente goza, confia o futuro ao futuro.
O mito pode ser uma metáfora da vida. Somos seres uniduais. Somos metade Prometeu, metade Epimeteu. Somos razão e desrazão. Somos mortais e semi-deuses. Viver bem é aceitar a vida como ela é. É se aceitar. A vida prometeica é dolorosa. A vida epimeteica é sofrida. A vida não deve negar a si mesma. A vida tem suas dores e delícias. Negar um lado de si é negar-se todo. Quem se nega não vive. Assumir o contrário de si que o constitui é abraçar-se e viver em plenitude.”

Aiton Siqueira



Confiar o futuro ao futuro; é viver intensamente. É não ter medo, é ultrapassar o entendimento. E por as vezes não entender, pode gerar dor, arrependimentos. É o preço da inconsequência e das emoções. Vive além do que se deve viver. No entanto, quem “pré pensa”, não se emociona. Não ri, não ama. E também não chora, não sente dor. Vive em uma linha reta escolhendo e guiando seu futuro. Sem sonhos e sem vida. Ser “pré e pós pensador” é encontrar o equilíbrio. É ter sonhos e poder escolhê-los. É confiar o futuro ao presente. É viver de amor sem sentir dor. É o equilíbrio mais difícil de se conseguir, e por isso aquele que mais buscamos. O equilíbrio entre emoção/razão, mente/coração. Quem consegue atinge a plenitude e pode viver.

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